Um Imperador de 14 anos

O "golpe" da Maioridade como ficou conhecida a antecipação da maioridade de Pedro II envolve detalhes políticos importantes que ajudam a entender a história do século XIX no Brasil. Neste capítulo do livro de José Murilo de Carvalho, a vida pessoal do jovem imperador mistura-se aos bastidores políticos da Regência.



O Ato Adicional de 1834 reformou a Constituição em sentido descentralizante. Criou as assembleias provinciais, concedendo mais poder às províncias, e aboliu o Conselho de Estado. A maior descentralização seguiu-se um recrudescimento dos conflitos e revoltas provinciais. Nunca houve período mais conturbado na história do Brasil. A morte de d. Pedro i cm 1834 eliminou a ameaça de restauração, e uma combinação de repressão e cooptação reduziu o poder de fogo dos farroupilhas da corte. Mas nova divisão logo se fez sentir entre liberais e conservadores. Os liberais moderados, vitoriosos contra caramurus e farroupilhas, dividiram-se. Um grupo, com o apoio de antigos caramurus, criou o Partido Conservador. Outro, com a simpatia de ex-farroupilhas, fundou o Partido Liberal. Monarquistas constitucionais ambos, distinguiam-se pela maior ênfase que davam os liberais à descentralização do poder, tanto no que se referia às províncias como às atribuições do Poder Moderador. Com variações ao longo do período, essa divisão perdurou até o final do Império.
A nova clivagem começou quando o liberal moderado Bernardo Pereira de Vasconcelos, que fora o redator do projeto do Ato Adicional, abandonou os companheiros e iniciou o que ele próprio chamou de "regresso conservador". Vasconcelos achava que as reformas haviam ido longe demais e se fazia necessário parar o carro revolucionário. Sua luta dirigiu-se, sobretudo, contra o ex-aliado de 1831, o padre Diogo Feijó, eleito regente em 35. Queria a revisão das leis de descentralização, responsáveis, dizia, pela anarquização do país. Era também favorável à escravidão e não queria combate sério ao tráfico, apesar de ter sido ele já proibido por uma lei de 1831, votada em obediência a tratado feito com a Inglaterra em 26. A luta travou-se na Câmara dos Deputados, principal arena do combate político na época. O padre Feijó era liberal de ideias, mas autoritário de temperamento e fraco de saúde. Preferiu renunciar a enfrentar a batalha parlamentar e passou o governo, em 1837, ao conservador Araújo Lima, futuro marquês de Olinda, o mesmo que retomou o ritual do beija-mão. O primeiro ministério do novo regente tinha Vasconcelos como figura dominante.
A ideia da antecipação da maioridade foi levantada já na luta contra Feijó. Em 1835, Vasconcelos aventou a possibilidade da regência da princesa Januária, três anos mais velha do que d. Pedro. A ideia não foi adiante. Quando os regressistas subiram ao poder em 1837, foi a vez de os liberais hastearem a bandeira maiorista. Em 1839, o deputado Montezuma apresentou proposta de antecipação da maioridade de d. Pedro. Nascido em 1825, este só atingiria a maioridade constitucional aos dezoito anos, isto é, em dezembro de 43. A mudança de mãos da causa maiorista, dos conservadores para os liberais, era indicação de que os grupos políticos, ainda mal organizados em partidos, não tinham encontrado um mecanismo institucional de convivência. Com receio de que o adversário se perpetuasse no poder, decidiram recorrer ao trunfo do poder monárquico, mesmo que fosse necessário colocá-lo nas mãos de um rapazinho. A juventude e a inexperiência do imperador podiam até sei uma vantagem. Sem experiência, ele poderia ser manipulado por quem o levasse ao poder.
Em 1840, três importantes leis centralizadoras estavam em discussão na Câmara dominada pelos conservadores. Uma delas modificava o Ato Adicional, outra reformava o Código Criminal, uma terceira recriava o Conselho de Estado. As três visavam aumentar o poder do governo sobre a administração, justiça e polícia. Os liberais sentiram o perigo e decidiram agir rápido. Em abril, formaram um clube chamado Sociedade Promotora da Maioridade do imperador, o sr. d. Pedro II. A primeira reunião da Sociedade foi na casa do senador padre José Martiniano de Alencar, pai do futuro romancista de mesmo nome. Entre os principais conspiradores estavam os Andrada de São Paulo, Antônio Carlos e Martim Francisco, ambos deputados; os Cavalcanti de Pernambuco, Antônio Francisco e Francisco de Paula, ambos senadores; Teófilo Otoni e o padre Antônio Marinho, liberais históricos de Minas Gerais. Os conspiradores contavam com a conivência do mordomo do paço, Paulo Barbosa, em cuja residência, a Chácara da Joana, passaram a ser feitas as reuniões. Antônio Carlos foi encarregado de conseguir a anuência do imperador, a quem chamava de "rapazinho". O tutor, marquês de Itanhaém, teria dito que, consultado, d. Pedro concordara com a ideia.
O projeto de antecipação da maioridade, apresentado no Senado, foi derrotado por dezoito votos a dezesseis. Na Câmara conservadora, a discussão foi violenta. Derrotados de novo, os maioristas levaram a questão para a rua e mobilizaram a população para pressionar os deputados. No dia 17 de julho, na capela do palácio, alguém gritou um viva à maioridade na frente do imperador. No dia seguinte, apareceram cartazes nas ruas com a quadra:
Queremos Pedro Segundo, Embora não tenha idade; A nação dispensa à lei, E viva a maioridade!
No dia 20, houve tumulto na Câmara. O deputado Antônio Navarro chamou o governo de "camarilha prostituída" e foi agarrado quando pareceu querer sacar um punhal. As galerias gritavam vivas estrondosos à maioridade. A sessão foi suspensa. Vasconcelos foi chamado com urgência ao ministério para, com sua reconhecida energia, parar um movimento revolucionário que não previra: as ruas clamando por um rei. Tomou logo a decisão de adiar as câmaras. Houve tumulto ainda maior na Câmara dos Deputados. Os Andrada gritavam que o regente era usurpador e traidor. Antônio Carlos bradou: "Quem é patriota e brasileiro siga comigo para o Senado. Abandonemos esta Câmara prostituída". Uma passeata de 3 mil pessoas dirigiu-se ao Senado, ainda localizado no Campo de Santana, e invadiu o recinto. Uma comissão foi enviada a São Cristóvão para consultar o jovem monarca. A comissão leu a representação e aguardou a resposta, tendo nesse meio-tempo chegado o regente. Enquanto isso, no Senado, o maiorista padre José Bento, abraçado a um busto do imperador numa das janelas do prédio, inflamava a multidão.
Há grande controvérsia histórica sobre o que então se passou. Alguns atribuem ao jovem imperador o precoce maquiavelismo de ter usado os maioristas para chegar mais rápido ao poder e de ter pronunciado um arrebatado "Quero já!" quando consultado pela comissão do Senado. O próprio monarca negou mais tarde, categoricamente, que tivesse pronunciado tal frase. No diário, por exemplo, afirmou que o "quero já" "não foi decerto pronunciado por mim", e que a aceitação da maioridade representara um sacrifício. Concordara com ela apenas depois de convencido por pessoas que o cercavam, entre as quais o tutor Itanhaém, o aio frei Pedro de Santa Mariana e o marquês de Sapucaí, de que ela era necessária para evitar as desordens que se anunciavam. Disse em outra ocasião que não se recordava de ter sido sondado antes pelos maioristas. Seu primeiro biógrafo, monsenhor Pinto de Campos, que o consultou e ao marquês de Sapucaí, registrou que, perguntado pelo regente se queria assumir o poder, d. Pedro teria respondido "sim". Perguntado, a seguir, se queria assumir já, respondera "já". Em vez do "quero já", teria havido um "sim, já".
Pelas atas da Sociedade Promotora deduz-se que dificilmente os maioristas teriam embarcado na aventura de um golpe de Estado sem alguma garantia da concordância do imperador. O mais provável é que tenha havido a sondagem e que d. Pedro, aconselhado pelos que o cercavam, tenha dado sua anuência. É o que se pode também deduzir de sua afirmação posterior de ter o partido maiorista se aproveitado da imaturidade dele. Era jovem demais e inexperiente demais, admitiu, para ter juízo e decisões próprias.
Ao ser anunciada no Senado, a notícia do assentimento provocou estrepitosos aplausos. Qualquer resistência da Regência foi logo inviabilizada pela adesão ao golpe do comandante de armas, Francisco de Paula Vasconcelos, e do comandante do corpo de estudantes da Escola Militar, que marchou para o Campo de Santana. No dia 23 de julho, a Assembleia Geral reunida num Senado cercado por 8 mil pessoas decretou formalmente a maioridade. O ato reeditava e completava o Sete de Abril. A praça era a mesma, o conteúdo era o mesmo, qual seja, a troca de governante feita sob pressão popular, o aclamado era o mesmo. D. Pedro li era plebiscitado uma segunda vez pela elite, pela tropa e pela rua. A diferença em relação a 1831 era que no primeiro caso o motivo principal era derrubar um rei, no segundo, entronizar outro. À tarde, d. Pedro li fez o juramento constitucional no mesmo local. Um cortejo popular levou-o até o paço da cidade. Não houve, dessa vez, o pânico e o pranto de 1831. Havia apenas um jovem tímido dividido entre a fascinação do poder e o temor diante do mundo novo que, inesperadamente, se abria para ele. As celebrações prolongaram-se pelo resto do dia, e, à noite, as ruas se iluminaram. Uma proclamação ao povo anunciava "uma nova era".
No dia 2 de dezembro, foi festejado o primeiro aniversário de d. Pedro como imperador, 152 de vida. No diário ele anotou as atividades do dia, iniciadas com o almoço de ovos e café com leite às sete horas da manhã, seguido da missa, à qual assistiu dentro de um uniforme que pesava oito libras, 3,6 quilos, "afora as ordens, a espada e a banda. Safa!". Depois, te-déum, beija-mão, e teatro às sete e quinze da noite. Fechou a entrada do diário com a observação "Agora, façam-me o favor de me deixarem dormir. Estou muito cansado, não é pequena a maçada". A manifestação de aborrecimento por cerimônias foi repetida no diário do dia do primeiro aniversário da maioridade, 23 de julho de 1841: "Quanto me custa um cortejo, como mói!". A sagração e a coroação realizaram-se em 18 de julho de 1841. O pintor Manuel de Araújo Porto Alegre, discípulo de Debret, desenhou as roupas de d. Pedro, construiu uma varanda no paço da cidade e depois esboçou um quadro da cerimônia. As festas rivalizaram com as de d. João VI e Pedro I. O barão Daiser, representante da Áustria, espantou-se com a exibição de luxo. Segundo ele, imensa multidão se apinhava no largo do Paço. Foram nove dias de celebração, que culminou com um baile para 1200 pessoas no mesmo paço. O imperador não dançou.
Passada a festa, era preciso governar. A tarefa não era fácil. A maioridade fizera-se exatamente por causa das dificuldades políticas. A Regência mostrara-se incapaz de prover um ambiente de convivência entre liberais e conservadores, gerando um clima propício a constantes revoltas. Essas revoltas ameaçavam a integridade do país. Pará e Bahia tinham proclamado sua independência em 1835 e 1837, respectivamente. Essas duas rebeliões haviam sido reprimidas, mas desde 1836 o Rio Grande do Sul era uma república independente. Estrangeiros que visitavam o Brasil prediziam a fragmentação do país em curto prazo. Foi o caso do príncipe de Joinville, que, tendo ido à corte e a Minas Gerais, concluiu que uma coisa era óbvia: "a impossibilidade de manter unido este imenso império". Um pouco mais tarde, o conde de Suzannet afirmou que a unidade da nação era mera aparência. São Paulo logo se separaria, imitando o Rio Grande do Sul, e todas as outras províncias aspiravam à independência.
Na frente externa, o país enfrentava a pressão militar do governo inglês para tornar efetiva a proibição do tráfico de escravos. O tráfico reduzira-se depois da lei de 1831, mas retornara com força após a vitória do regresso em 37. A partir de 1839, a marinha inglesa redobrou a apreensão e o julgamento de navios negreiros, criando situações constrangedoras para a soberania nacional. Além disso, o Brasil já vinha fazia algum tempo tentando, sem nenhum resultado, rever o tratado comercial de 1827, que dava à Inglaterra o privilégio de uma tarifa máxima de 15% sobre o valor das mercadorias importadas.
De positivo, havia no campo econômico a ascensão do café ao primeiro lugar nas exportações, desbancando o açúcar. No final da década de 1830, esse produto já atingia a metade da exportação. Como a produção cafeeira se concentrava na parte fluminense do Vale do Paraíba, o Rio de Janeiro assumia a posição de pólo dominante da economia nacional. Com isso, o esforço de centralização política e de manutenção da integridade do país ganhava um poderoso apoio na economia.
Do governo do jovem imperador esperava-se muito. A elite política esperava que a figura suprapartidária de d. Pedro II reduzisse os conflitos que a dividiam. Esperava, ainda, que a legitimidade centenária da monarquia congregasse a população do país. Em várias revoltas populares da Regência, ficara evidente essa legitimidade. Em 1832, a guerra dos Cabanos em Pernambuco e Alagoas reivindicara a volta de d. Pedro I. Em 1835, a Cabanagem, no Pará, tinha separado a província, mas os rebeldes gritavam vivas a Pedro n. Em 1837, a Sabinada, na Bahia, separara a província até que o monarca fosse declarado maior de idade. Na Balaiada, revolta popular maranhense, também se davam vivas ao imperador menor. As duas coisas, redução do conflito intra-elite e adesão popular, eram condição para a manutenção da ordem social e política e da integridade nacional.


Extraído de: CARVALHO, J. M. D. Pedro II. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007, PP.36-43